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Eduardo Galeano

O diagnóstico e a terapêutica

Helena Murphy

O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um
reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos,
despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos
febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O
amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por
descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode
impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de
alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e
ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção
capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis
beberagens com garantia e tudo.

(do Livro dos Abraços, Eduardo Galeano)

Karina

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Para inventar o mundo cada dia

 

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Conversamos, comemos, fumamos, caminhamos, trabalhamos juntos, maneiras de fazer o amor sem entrar-se, e os corpos vão se chamando enquanto viaja o dia rumo à noite.

Escutamos a passagem do último trem. Badaladas no sino da igreja.. É meia-noite.

Nosso trenzinho próprio desliza e voa, anda que te anda pelos ares e pelos mundos, e depois vem a manhã e o aroma anuncia o café saboroso, fumegante, recém-feito. De sua cara sai uma luz limpa e seu corpo cheira a molhadezas.

Começa o dia.

Contamos as horas que nos separam da noite que vem. Então, faremos o amor, o tristecídio.

 

(Eduardo Galeano in Mulheres)

 

Karina

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Celebração da amizade

Em post anterior, já fizemos referência e deferência ao grande escritor uruguaio Eduardo Galeano. Abaixo, trazemos uma espetacular crônica sua, extraída da maravilhosa obra “O Livro dos Abraços”. Apreciem.

Celebração da amizade

Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam à manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque. Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários.

Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, Senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou…

Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação. Depois de um longo silêncio, ela disse:

— Meu filho morreu.

Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende…

— Meu filho morreu — repetiu ela.

E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade…

— Cretinos — fulminou a senhora.

E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:

— Meu filho morreu e se transformou em pombo.

Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calçadas, propuseram:

— Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar?

Ela ajeitou o chapéu preto:

— Ah!, não! De jeito nenhum!

Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:

— Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

Telma

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Excertos de Eduardo Galeano

Eduardo Hugues Galeano, jornalista e escritor,  nasceu em 1940, em Montevidéu  e é  mundialmente reconhecido por suas obras jornalísticas e literárias .

Dentre seus mais consagrados livros estão: De pernas pro ar, Dias e noites de amor e de guerra, Futebol ao sol e à sombra, O livro dos abraços, Memória do fogo, Mulheres, As palavras andantes, Vagamundo e As veias abertas da América Latina.

A seguir, colacionamos dois excertos que demonstram cabalmente a grandiosidade e versatilidade do referido escritor uruguaio, que domina o mundo das palavras e discorre à vontade sobre o tema que for.

Janela Sobre Uma Mulher (em As Palavras Andantes)

“Essa mulher é uma casa secreta. Em seus cantos, guarda vozes e esconde fantasmas.

Nas noites de inverno, jorra fumaça. Quem entra nela, dizem, não sai nunca mais.

Eu atravesso o fosso profundo que a rodeia.

Nessa casa serei habitado. Nela me espera o vinho que me beberá. Muito suavemente bato na porta, e espero.”


A dignidade da arte (em O Livro dos Abraços)

“Eu escrevo para os que não podem me ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não tem com o quê.

Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.

Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos.”

Telma

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