“Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.”
(Clarice Lispector em A Hora da Estrela)
Karina
“Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.”
(Clarice Lispector em A Hora da Estrela)
Karina
Dedicaremos este post ao notável escritor português José Saramago, que morreu hoje aos 87 anos de idade e nos deixou um legado precioso.
Certamente os fãs de Saramago sentirão falta do estilo crítico e original presente em sua obra. Nos resta ler e reler tudo o que ele publicou.
Pinçamos, dentre muitas, uma frase do grande e já saudoso escritor para ilustrar o post de hoje:
“Das habilidades que o mundo sabe, essa ainda é a que faz melhor: dar voltas.”
Karina
Ausência
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos
que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente
exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a
tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a
madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o
grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala
amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no
espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono
desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves,
das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
(O poema acima foi extraído do livro Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa – volume único – Editora Nova Aguilar)
Karina
O escritor e jornalista Wander Piroli nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1931. Autor de livros consagrados como “A mãe e o filho da mãe”, “A máquina de fazer amor” e “É proibido comer grama”, entre outros, nos deixou no ano de 2006. Realista, em regra seus personagens principais são provenientes de baixas classes sociais, com uma vida difícil, erigidos à categoria de grandes heróis do dia a dia em suas histórias.
O conto postado abaixo é de sua autoria e traz justamente essa visão de mundo realista, mas sem deixar de apresentar um toque de pureza e ternura. Aprecie:
Trabalhadores do Brasil
Como uma ilha entre as pessoas que se comprimiam no abrigo de bonde, o homem mantinha-se concentrado no seu serviço. Era especialista em colorir retrato e fazia caricatura em cinco minutos. No momento ele retocava uma foto de Getúlio Vargas, que mostrava um dos melhores sorrisos do presidente morto.
O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesouras e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima de pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridades de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.
Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.
Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:
– Você, Maria.
Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não – murmurou a mulher.
O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.
– Não houve mesmo nada? – tornou o homem.
– Claro que não, Zé. Eu vim à toa.
– E os meninos?
– Mamãe está lá com eles.
– Como é que você arranjou para vir até aqui?
– Uai, eu vim.
– A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.
– Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.
– Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.
– Fez alguma coisa hoje, Zé?
– Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.
A mulher sentou no tamborete, desajeitada.
– Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.
– Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.
– Mas ela não estava doente?
– Você sabe como mamãe é.
– E o Tonhinho?
– Está lá.
– O carnegão saiu?
A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.
– Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.
A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.
– Esses pastéis.
– Oh, Zé, para que você fez isso?
– Vamos, come um.
– Você não devia ter comprado.
– Vamos.
A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.
– Come o outro, Zé.
– Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.
– Então eu vou levar ele pros meninos.
– É pior, Maria.
O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se.
– Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.
– Não, eu passei a manhã toda assentado.
A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:
– Acho que eu vou andando.
– Já vai?
– Mamãe não aguenta eles, você sabe.
– Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.
O homem tirou uma nota do bolso de dentro do paletó e estendeu-a para a mulher.
– Volta de bonde.
– Não, Zé.
– É muito longe, criatura.
– Não.
– Ora, minha nega.
A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.
– Vou ver se levo.
O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.
– Não chega tarde não, viu, Zé.
– Chego não.
– Você vai fazer.
– Hoje eu sei que vai melhorar.
– Vai sim, Zé. Eu sei que vai. Eu sei.
A mulher afastou-se rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.
Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.
Telma
Oferecemos aos leitores do blog o belo poema abaixo, de autoria de Manuel Bandeira:
A estrela
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
(Em Estrela da vida inteira)
Karina
Abaixo, seguem algumas frases acerca do medo, da lavra de diversos pensadores. Boa reflexão sobre esse sentimento que tanto abala e oprime o ser humano. Confira:
“O medo segue o crime, e é o seu maior castigo.” (Voltaire)