Archive for julho, 2012

O outro lado, por José Saramago

O outro lado

Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que cada dia me vem parecendo menos disparatada, fi-la eu muitas vezes em criança, mas só a fazia a mim próprio, não a pais nem professores porque adivinhava que eles sorririam da minha ingenuidade (ou da minha estupidez, segundo alguma opinião mais radical) e me dariam a única resposta que nunca me poderia convencer: “As coisas, quando não olhamos para elas, são iguais ao que parecem quando não estamos a olhar”. Sempre achei que as coisas, quando estavam sozinhas, eram outras coisas. Mais tarde, quando já havia entrado naquele período da adolescência que se caracteriza pela desdenhosa presunção com que julga a infância donde proveio, acreditei ter a resposta definitiva à inquietação metafísica que atormentara os meus tenros anos: pensei que se regulasse uma máquina fotográfica de modo a que ela disparasse automaticamente numa habitação em que não houvesse quaisquer presenças humanas, conseguiria apanhar as coisas desprevenidas, e desta maneira ficar a conhecer o aspecto real que têm. Esqueci-me de que as coisas são mais espertas do que parecem e não se deixam enganar com essa facilidade: elas sabem muito bem que no interior de cada máquina fotográfica há um olho humano escondido… Além disso, ainda que o aparelho, por astúcia, tivesse podido captar a imagem frontal de uma coisa, sempre o outro lado dela ficaria fora do alcance do sistema óptico, mecânico, químico ou digital do registro fotográfico. Aquele lado oculto para onde, no derradeiro instante, ironicamente, a coisa fotografada teria feito passar a sua face secreta, essa irmã gêmea da escuridão. Quando numa habitação imersa em total obscuridade acendemos uma luz, a escuridão desaparece. Então não é raro perguntar-nos: “Para onde foi ela?” E a resposta só pode ser uma: “Não foi para nenhum lugar, a escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta”. Foi pena que não mo tivessem dito antes, quando eu era criança. Hoje saberia tudo sobre a escuridão e a luz, sobre a luz e a escuridão.

(retirado de http://caderno.josesaramago.org)

Karina

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A flor e a náusea

A flor e a náusea

 

Preso à minha classe e a algumas roupas,

Vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas.

Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia.

Mas é uma flor.

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 

(Carlos Drummond de Andrade)

Karina

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Sexta-feira com Clarice

Mais um fragmento da maravilhosa Clarice Lispector:

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Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida

 

Karina

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Invictus

O escritor britânico William Ernest Henley nascido em 1849 teve este belo poema de sua autoria divulgado no filme Invictus, que conta a vida de Nelson Mandela:

                                                                                                        Invictus     

                                                                                                          

Out of the night that covers me,

Black as the pit from pole to pole,

I thank whatever gods may be

For my unconquerable soul.

/

 

In the fell clutch of circumstance

I have not winced nor cried aloud.

Under the bludgeonings of chance

My head is bloody, but unbowed.

/

Beyond this place of wrath and tears

Looms but the Horror of the shade,

And yet the menace of the years

Finds and shall find me unafraid.

/

It matters not how strait the gate,

How charged with punishment the scroll,

I am the master of my fate:

I am the captain of my soul.

Invictus

 

Dentro da noite que me rodeia

Negra como um poço de lado a lado

Agradeço aos deuses que existem

por minha alma indomável

 /

Sob as garras cruéis das circunstâncias

eu não tremo e nem me desespero

Sob os duros golpes do acaso

Minha cabeça sangra, mas continua erguida

 /

Mais além deste lugar de lágrimas e ira,

Jazem os horrores da sombra.

Mas a ameaça dos anos,

Me encontra e me encontrará, sem medo.

 /

Não importa quão estreito o portão

Quão repleta de castigo a sentença,

Eu sou o senhor de meu destino

Eu sou o capitão de minha alma.

 

Karina

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Frase da Semana

“A renúncia é a libertação. Não querer é poder.”

 

(Fernando Pessoa)

Karina

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Poema enjoadinho

Poema Enjoadinho

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Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

( Vinicius de Moraes in Poesia Completa e Prosa – Volume único – Ed. Nova Aguilar)

 

Karina

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Quintana

PEQUENO ESCLARECIMENTO

“Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio – um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio… Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.”

(Mário Quintana)

 

Karina

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Carta a um refém

A obra Cartas Do Pequeno Príncipe é uma compilação de vários escritos de Antoine Saint Exupéry.  Em Carta a Um Refém, de 1943, o autor nos revela todo seu amor à França e também à humanidade como um todo. O contexto histórico é o da Segunda Guerra Mundial, em que a França encontrava-se ocupada pelos alemães  e o autor passa a discorrer sobre pensamentos e emoções ligados à ideologia política, esperança, patriotismo, exílio, saudade e sofrimento. Abaixo, seguem alguns trechos. Vale a pena!

“… Conheci, vocês talvez conheceram, essas famílias um pouco estranhas que conservavam à mesa o lugar de um morto. Negavam o irreparável. Mas esse desafio nunca pareceu consolador. Dos mortos devemos fazer mortos. Porque então eles reencontram, em seu papel de mortos, uma outra forma de presença. Mas aquelas famílias impediam a volta deles. Faziam deles ausentes eternos, convivas atrasados por toda a eternidade. Trocavam o luto por uma espera sem sentido. E essas casas me pareciam mergulhadas em uma inquietude irremediável, muito mais dolorosa que a tristeza. Do piloto Guillaumet, o último amigo que perdi e que desapareceu no serviço postal aéreo, meu Deus!, aceitei a morte. Guillaumet não mudará mais. Nunca mais estará presente, mas também nunca mais estará ausente. Desapareceu o lugar dele à minha mesa, esse ardil inútil, e fiz dele um verdadeiro amigo morto.

… Eu encontrava no navio os meus refugiados. Esse navio emanava também uma leve angústia. Esse navio transportava, de um continente a outro, aquelas plantas sem raízes. Eu dizia a mim mesmo: “Quero ser um viajante, não um emigrante. Aprendi tantas coisas em minha pátria que serão inúteis em outros lugares”. Mas eis que meus imigrantes tiravam do bolso a pequena caderneta de endereços, os restos de sua identidade. Fingiam ainda ser alguém. Agarravam-se com todas as forças a alguma significação. “Sabem, eu sou fulano de tal, diziam eles… sou de tal cidade… amigo de sicrano… conhecem sicrano?”

E contavam a história de um companheiro, ou a história de uma responsabilidade, ou a história de um erro, ou qualquer outra história que os pudesse ligar a qualquer coisa. Mas nada desse passado lhes ia servir mais, desde que se exilaram.

… A França, sem dúvida,  era para mim não uma deusa abstrata, não um conceito de historiador, mas uma carne de que eu dependia, uma rede de liames que me regia, um conjunto de pólos que apoiavam os declives do meu coração.  Eu experimentava a necessidade de sentir mais sólidos e mais duráveis que eu mesmo os de que necessitava para orientar-me. A fim de saber para onde voltar. A fim de existir.

… Foi num dia antes da guerra, nas margens do saonde, no caminho de Tournus. Nós tínhamos escolhido, para almoçar, um restaurante cujo balcão de pranchas se erguia por sobre o rio. Debruçados em uma mesa simples, cheia de nomes gravados a faca pelos clientes, tínhamos pedido dois Pernod. Seu médico lhe proibia o álcool, mas você desobedecia nas grandes ocasiões. Aquela era uma delas. O que nos alegrava era mais impalpável que a qualidade da luz. Você tinha, pois, escolhido esse Pernod das grandes ocasiões. E como dois marinheiros,  a dois passos de nós, descarregavam um barco, convidamos os marinheiros. Chamamo-los do alto do balcão. E eles vieram. Simplesmente vieram. Tínhamos achado tão natural convidar companheiros, talvez por causa daquela invisível festa em nós. Era evidente que eles responderiam ao sinal. E então nós brindamos!

O sol estava agradável.  Seus raios tépidos banhavam as árvores da outra margem e a planície até o horizonte. Estávamos cada vez mais alegres, sempre sem saber por quê. Sentíamo-nos seguros porque o sol iluminava bem, porque o rio corria, a refeição era a refeição, os marinheiros tinham respondido ao chamado, a criada nos servia com uma espécie de gentileza feliz, como se presidisse uma festa eterna. Estávamos inteiramente em paz, bem integrados ao abrigo da desordem em sua civilização definitiva. Gozávamos de uma espécie de estado perfeito em que, satisfeitos todos os desejos, nada mais tínhamos a confiar-nos. Sentíamo-nos puros, direitos, luminosos, indulgentes. Não saberíamos dizer que verdade nos aparecia em sua evidência. Mas o sentimento que nos dominava era bem o da segurança. De uma segurança quase orgulhosa.

Desse modo o universo, através de nós, demonstrava sua boa vontade. A condenação das nebulosas, o endurecimento dos planetas, a formação das primeiras amebas, o trabalho gigantesco da vida que caminhou da ameba até o homem, tudo tinha maravilhosamente convergido para chegar, através de nós, àquela qualidade de prazer. Não era nada má, como êxito.

Assim, nós saboreávamos essa compreensão muda e esses ritos quase religiosos. Embalados poelo vavivém da criada sacerdotal, os marinheiros e nós brindávamos como fiéis de uma mesma Igreja, embora não soubéssemos dizer qual. Um dos dois marinheiros era holandês. O outro, alemão. Este tinha outrora fugido do nazismo, pois era perseguido lá como comunista ou como trotskysta, ou como católico, ou como judeu. (Não me lembro mais do rótulo em nome do qual o homem era proscrito). Mas, naquele instante, o marinheiro era uma coisa bem diferente de um rótulo. O conteúdo é que contava. A massa humana. Era um amigo, simplesmente. E estávamos de acordo, entre amigos.

… É uma coisa impressionante a idade de um homem! Resume uma vida inteira. A maturidade que a gente adquire vai-se fazendo lentamente. E se faz contra tantos obstáculos vencidos, contra tantas doenças graves curadas, contra tantos sofrimentos apaziguados,  contra tantos desesperos superados, contra tantos riscos, cuja maior parte escapou à consciência. Faz-se através de tantos desejos, tantas esperanças, tantos remorsos, tantos esquecimentos, tanto amor. A idade de um homem representa uma bela carga de experiências e de lembranças! Apesar das ciladas, dos tropeços, dos desvios, continuamos a avançar, de qualquer jeito, com dificuldade, com uma boa carroça. E agora, graças a uma convergência obstinada de ocorrências felizes, chegamos a determinado ponto. A gente tem trinta e sete anos. E a boa carroça, se Deus quiser, levará ainda mais longe sua carga de lembranças. “

Telma

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De que são feitos os dias?

De que são feitos os dias?

 

De que são feitos os dias?

– De pequenos desejos,

vagarosas saudades,

silenciosas lembranças.

/

Entre mágoas sombrias,

momentâneos lampejos:

vagas felicidades,

inatuais esperanças.

 /

De loucuras, de crimes,

de pecados, de glórias

– do medo que encadeia

todas essas mudanças.

 /

Dentro deles vivemos,

dentro deles choramos,

em duros desenlaces

e em sinistras alianças…

 

(Cecília Meireles in Canções)

Karina

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