Confiram hoje palavras de Montaigne sobre o medo:
Do medo
Obstuoui, steteruntque comae, et vox faucibus haesit.
(Fiquei estupefato, meus cabelos eriçaram-se, minha voz prendeu-se na garganta. Virgílio)
Não sou bom naturalista (como se diz) e mal sei por quais mecanismos o medo age em nós; mas de qualquer maneira essa é uma estranha paixão e dizem os médicos que não há outra que mais depressa tire nosso discernimento fora de sua devida compostura. De fato, vi muitas pessoas que se tornaram insensatas de medo; mesmo nos mais serenos é indiscutível que, enquanto seu acesso dura, provoca terríveis perturbações. Deixo de lado o vulgo, a qual ela mostra ora os bisavôs saindo do túmulo, envoltos em seus sudários, ora lobisomens, duendes e quimeras. Mas, entre os próprios soldados, onde deveria encontrar menos espaço, quantas vezes transformou um rebanho de ovelhas em esquadrão de couraceiros? juncos e caniços em homens armados e lanceiros? nossos amigos em nossos inimigos? e a cruz branca na vermelha?
(…)
Ora ele nos dá asas nos pés; ora nos prega os pés e os entrava. (…)
Ele expressa sua extrema força quando para seu serviço nos impulsiona novamente para a valentia que subtraiu de nosso dever e de nossa honra. Na primeira batalha regular que os romanos perderam conta Aníbal, sob o comando do cônsul Semprônio, uma tropa de bem dez mil solados de infantaria, tomando-se de pavor e não vendo outro lugar por onde dar passagem à sua covardia, foi lançar-se em meio ao grosso dos inimigos, que atravessou com espantosa bravura, com grande mortícínio da cartagineses, comprando uma fuga vergonhosa pelo mesmo preço que teria por uma gloriosa vitória. É disso que tenho mais medo do que do próprio medo.
Ademais ele suplanta em violência todas as outras ocorrências.
(…)
Os que tiverem sido bastante maltratados em algum embate de guerra, no dia seguinte são levados de volta ao ataque, ainda feridos e ensanguentados. Mas os que tiverem concebido um grande medo do inimigo, não os faríeis sequer olhá-los de frente. Os que estão em opressivo temor de perder seus bens, de ser exilados, de ser subjugados, vivem em contínua angústia, perdendo o gosto pela comida, pela bebida e pelo descanso; ao passo que os pobres, os banidos, os servos amiúde vivem tão alegremente quanto os outros. E tantas pessoas que por não poderem suportar os aguilhões do medo enforcaram-se, afogaram-se, atiraram-se no abismo, ensinaram-nos que ele é ainda mais importuno e insuportável do que a morte.
Os gregos reconhecem uma outra espécie de medo, que não é causada por erro de nosso julgamento, surgindo, dizem eles, sem causa aparente e por impulso celeste. Povos inteiros frequentemente se vêem tomados por ele, e exércitos inteiros. Assim foi o que levou a Cartago uma extrema aflição. Só se ouviam gritos e vozes apavoradas. Viam-se os habitantes sair de suas casas, como ante o alarme, e se atacarem, ferirem e matarem uns aos outros, como se fossem inimigos a ocupar sua cidade. Tudo nela estava em desordem e em tumulto, até que, por orações e sacrifícios, eles apaziguaram a ira dos deuses. Os gregos chamam isso de terrores pânicos.
Karina