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Lygia Fagundes Telles, ao acaso

Para ilustrar o post de hoje abri ao acaso o livro “A Disciplina do Amor” da Lygia e eis aqui o texto, cheio de profundidade:

Enquanto se vai viver


Por que a morte me estarrece assim, como se fosse a primeira vez, como se nunca antes? A rara morte,  três ou quatro. Com as outras, tudo normal ou quase: o choque. A introspecção com uma consolação filosofante. O apego maior a Deus. A cristalização da dor, pequenas pedras que vou guardando na minha mesa,  de vez em quando tomo uma,  sinto-lhe a forma, o calor, aperto-a com força na gruta da mão. Devolvo-a a seu lugar. Mas essas três ou quatro mortes que me arremeteram à infância, a certas noites de tamanha fragilidade. Tamanho medo, como se não fosse amanhecer mais.

A memória se abre na mesa, baralho de cartas marcadas, escolho uma assim ao acaso. Este é um jantar na casa dos B.M., foi em 43? Ou em 44? Não importa. E.V. chega com uma capa de chuva, cachecol azul-marinho e chapéu desabado, faz frio. Chegam alguns colegas da faculdade, alguém me entrega um violão, toco mal, mas o que é bem ou mal nessa idade? O calor do vinho, o calor da glória que vinha dele, tudo era importante, ah! Que emoção quando cantamos a cantiga da Academia, os versos se referiam à guerra:  Quando se sente bater/No peito heróica pancada/Deixa-se a folha dobrada/Enquanto se vai morrer.

E.V. faz perguntas sobre a participação dos estudantes na Força Expedicionária: sim, vários dos nossos já tinham partido, estavam lutando na Itália. Um poeta se levanta e a voz embargada fala do amor e da morte enquanto, emocionadíssima, eu faço no violão um grave fundo musical. E.V. elogiou o poema, elogiou meu violão mas reagiu na hora:  éramos tão jovens, que conversa era essa de desencanto, de pessimismo, que horror! estávamos mais intoxicados do que os românticos do romantismo. “Vocês ainda vão ver tanta coisa, meninos, vão viver tanto e viver é tão bom. Tebas não tem uma porta, mas mil e nessa idade estão todas abertas!”

Fiquei olhando  meu copo: através do cristal a vida ficava tão transparente.

Karina

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Pensamentos de Lygia Fagundes Telles

Mais um fragmento extraído do livro A Disciplina do Amor, onde  Lygia Fagundes Telles descreve com humor, ironia e inteligência sentimentos que qualquer ser humano já experimentou.

Satanificação

appleA Ira, a Soberba, a Inveja, a Luxúria, a Avareza, a Gula e, finalmente, a Preguiça, o sonolento Demônio do Meio-Dia – esses os sete pecados capitais que  já podem ser identificados na satanificação, isso de acordo com local e hora. Os diabinhos da Ira estão no trânsito, olhos injetados de fumaça e ódio, a boca espumejando no ranger de dentes e freios: seis horas da tarde, Hora da Ave-Maria, lembra? Tinha um quadro que em várias salas de visita da minha infância: no doce colorido do crepúsculo, um grupo de camponeses bem vestidos e  rosados, as mulheres de longos aventais e toucas, os homens de sapatões rudes mas sólidos, as mãos limpas, os olhos baixos no fervor da prece por entre os montes de feno dourado, Ave-Maria – acho que esse era o nome do quadro. Lembro que tinha um bebezinho louro no cesto ou berço de madeira, queria eu ser aquele bebezinho, pensei na tarde em que vi um tipo descer do carro (ao lado do meu) e verde e aumentando em cólera apontar o revólver para um velho que teria propositadamente amassado o seu pára-lama. Hora de vítimas de desastres e da fuzilaria, as armas esperando no porta-luvas, que luvas? Hora de vítimas dos assaltos, quando o carro para no sinal vermelho e um outro vermelho se acende no peito. Na nuca. Tinha um antigo programa no rádio nessas hora crepuscular, as músicas tão espirituais, minha mãe chamava a gente para rezar junto, só pensamentos elevados enquanto o chefe de família – mas que família? Que chefe?

Os possessos da Soberba evitam as aglomerações, as misturas. Portas fechadas, o horror da invasão. Gostam de reuniões sociais seletas mas espaçosas, onde os peitos estufados, cobertos de medalhas, iniciam a lenta dança dos pavões – poder político, poder econômico e outros poderes, varetas dos leques que se cruzam mas não se olham, o que digo? se olham para admirar a própria imagem refletida no olho do outro. Já os possessos da Inveja têm especial predileção pelos palácios burocráticos e centros de artistas do baile das quatro artes, ô Deus! como sofrem os invejosos na luta competitiva à qual são condenados, os olhos cozidos como os olhos da lagostas em água fervente, sou Caim matando meu irmão? Sou Judas traindo o meu Mestre? O invejoso só tem trégua com a infelicidade do próximo mas por que no lugar desse próximo aniquilado nascem dez, vinte vencedores?! Um sofrimento. De todos os pecadores, talvez o invejoso seja o que mais sofre embora os possessos da Luxúria também rodopiem sem descanso, as injúrias (era assim que minha pajem chamava às partes baixas) açuladas e trespassadas pelos garfos dos diabinhos luxuriosos, a voz pesada, o olhar pesado – tantas ruas do prazer e do desprazer da insatisfação. Os estímulos da indústria do sexo no auge do aperfeiçoamento para o desempenho à altura e ainda a ansiedade, o desassosego na busca que é só obsessão, sou caçador? Ou caça? Mas essa gente não pensa noutra coisa? – perguntaria tia Pombinha diante de uma banca de revistas e jornais. Pensa, sim. Pensa muito em guardar e agora as caras e casas tomam um ar respeitável, estamos entrando na rua dos bancos e dos negócios: eis a Avareza com seus demoninhos de olho vivo, umedecendo a ponta do dedo entortado de tanto contar dinheiro, medo de dar, medo de dividir. O medo dos medos: medo de perder, ih! como acumular tudo numa vida assim provisória? “Mas por que o desperdício dessa vela acesa?” – reclamou o avarento que preferiu morrer no escuro. Quanto aos possessos da Gula e da Preguiça, esses se espalharam tão intensamente: os da Gula nos bairros ricos de preferência, não por virtude dos  pobres mas por simples insuficiência econômica. Se a beleza (que os luxuriosos amam) virou artigo de luxo, a comida só pode ser um belo vício nos bairros de classe A. É por acaso que falo nos dois pecados assim juntos porque o preguiçoso nunca é um guloso. A gula exige empenho, imaginação do apetite. Mastigar cansa e esse dispêncio de energia o preguiçoso evita, prefere papinhas, líquidos. Quando o guloso chega à saciedade e não está saciado (nunca está) mete o dedo na garganta, quer recomeçar tudo. Mas eis uma violência que o preguiçoso detesta: o ato de vomitar. Ou antes, que não aprecia porque ele não odeia nem ama, a paixão é laboriosa, exige fervor e o preguiçoso nunca esquenta. Não se define nem define: contorna. Na imobilidade se defende dos prazeres da cama e da mesa. No alheamento que chama de privacidade,  se guarda. Música suave, que não seja solicitante. Pessoas que não façam perguntas, ele nem sequer termina as frases, os gestos. A graça das coisas incompletas no ar… Vem a mosca obumbrada, pousa na sua face e ele afasta a mosca com um movimento brando mas quando ela volta uma segunda vez ele deixa ficar deixa ficar deixa ficar.

Karina

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Vocação para a vida – Lygia Fagundes Telles

Da vocação:

Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?

Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.”

No trecho acima, que integra o livro de fragmentos A disciplina do amor, Lygia Fagundes Telles, sempre genial, nos dá uma maravilhosa lição de vida e de esperança.

Karina

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Os amantes

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Estranho, sim. As pessoas ficam desconfiadas, ambíguas diante dos apaixonados. Aproximam-se deles, dizem coisas amáveis, mas guardam certa distância, não invadem o casulo imantado que envolve os amantes e que pode explodir como um terreno minado, muita cautela ao pisar nesse terreno. Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentes e o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça. Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, ao mesmo tempo os protege como uma armadura. Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem.”

O belíssimo trecho acima abre o livro de fragmentos “A disciplina do amor”, de Lygia Fagundes Telles.

Karina

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Os gatos, por Lygia Fagundes Telles

Nosso primeiro post de 2009 tratará novamente dos gatos. Insistimos em falar sobre os belos felinos, pois muitas pessoas infelizmente ainda têm preconceito com relação aos bichanos. Alguns dizem que eles são falsos, outros que são interesseiros…  Nada mais injusto!

O gato é totalmente diferente do cão por causa de sua independência. Isso evidentemente não quer dizer que não nutrem amor por seus donos. Gatos sentem amor sim, mas sua forma de demonstrar é outra.

Além do mais, como já dissemos anteriormente, o gato é a melhor companhia para quem aprecia a leitura de um bom livro, pois é um animal silencioso e auto-suficiente.

Lygia Fagundes Telles não conhecia bem os gatos e foi depois de conviver com um que escreveu este maravilhoso e verdadeiro texto. Vejam:

lygia_fagundes_tellesOs Gatos

“Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes,quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
Mas espera, já estou me precipitando, eu pensava naquela fábula da infância: é que Deus Nosso Senhor pediu água ao cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos e mesuras foi levá-lo ao Senhor. Pedido igual foi feito ao gato e o que fez o gato? O fingido escolheu um copo todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo nojento na mão divina.
Acreditei na fábula, na infância a gente só acredita. Mais tarde, conhecendo melhor o gato, descobri que ele jamais teria esse comportamento, questão de feitio. De caráter. Ele ouviria a ordem e continuaria deitado na almofada, olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que cachorro que até dormindo se parece com o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhada, só cachorro. Meus cachorros riam demais abanando o rabo, que é o jeito natural que eles têm de manifestar alegria, chegavam mesmo a rolar de rir, a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! indecifrável. Inatingível.
Nem pior nem melhor do que o cachorro, mas diferente. Fingido? Não, ele nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu da moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e olham. Olham. Cavilosidade sugere esconderijo, cave – aquele recôncavo onde o vinho envelhece.
Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente.
Foi na minha juventude que conheci o gato bem de perto. Me preparava para os vestibulares da Academia do Largo de São Francisco, era noite. E eu lia Iracema sem vontade, lia em voz alta, aos brados, para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada entrando pela janela e parando atrás da minha cadeira. Senti o olhar da coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando aquela calma que estava longe de sentir: um gato malhado, espetado nas quatro patas, me encarava, perplexo. Eu também perplexa. Fomos nos recuperando do susto, eu menos tensa do que ele. Meu apartamento era no primeiro andar de um prédio cercado de casario e essa janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima, por onde transitavam os gatos do bairro.
Por onde andam hoje os gatos que não encontro mais nenhum. Naquele tempo havia gato à beça nos muros, nos telhados. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde agora os telhados nos quais eles ficavam tomando sol? Caçando passarinho. Amando. Os ratos todos em plena circulação, fortalecidos. E os gatos, onde estão os gatos? Pois aquele era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas num fundo branco. E os olhos. Por alguma razão obscura, escolheu minha casa: estendi a mão afeita a acariciar cabeça de cachorro. Mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro – primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me confundiu. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
Fui buscar o pires de leite, deixei-o ao alcance do visitante da noite e continuei a ler o romance da virgem dos lábios de mel, mas em voz baixa, intuí que ele preferia o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é nítido como sexo de cachorro, outra diferença importante. Leva algum tempo para a descoberta do sexo, da unha e da idade.
Gato ou gata, vai se chamar Iracema, resolvi. E deixei meu hóspede, a casa é sua.
Então ouvi o ruído delicado, ele bebia leite, mas não como os cachorros bebem, sofregamente, espirrando em redor. O gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
“Tudo passa sobre a terra!” – estava escrito no final do romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete. Também você vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que permaneceria infinita na minha finitude
.”
(Lygia Fagundes Telles – texto extraído do livro A Disciplina do Amor)

 Karina

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