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Conto de Wander Piroli

O escritor e jornalista Wander Piroli nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1931. Autor de livros consagrados como “A mãe e o filho da mãe”, “A máquina de fazer amor” e “É proibido comer grama”, entre outros, nos deixou no ano de 2006. Realista, em regra seus personagens principais são provenientes de baixas classes sociais, com uma vida difícil, erigidos à categoria de grandes heróis do dia a dia em suas histórias.

O conto postado abaixo é de sua autoria e traz justamente essa visão de mundo realista, mas sem deixar de apresentar um toque de pureza e ternura. Aprecie:

Trabalhadores do Brasil

Como uma ilha entre as pessoas que se comprimiam no abrigo de bonde, o homem mantinha-se concentrado no seu serviço. Era especialista em colorir retrato e fazia caricatura em cinco minutos. No momento ele retocava uma foto de Getúlio Vargas, que mostrava um dos melhores sorrisos do presidente morto.

O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesouras e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima de pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridades de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:

– Você, Maria.

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

– Aconteceu alguma coisa?

– Não – murmurou a mulher.

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

– Não houve mesmo nada? – tornou o homem.

– Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

– E os meninos?

– Mamãe está lá com eles.

– Como é que você arranjou para vir até aqui?

– Uai, eu vim.

– A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

– Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

– Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.

– Fez alguma coisa hoje, Zé?

– Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.

A mulher sentou no tamborete, desajeitada.

– Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.

– Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.

– Mas ela não estava doente?

– Você sabe como mamãe é.

– E o Tonhinho?

– Está lá.

– O carnegão saiu?

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.

– Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.

– Esses pastéis.

– Oh, Zé, para que você fez isso?

– Vamos, come um.

– Você não devia ter comprado.

– Vamos.

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.

– Come o outro, Zé.

– Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.

– Então eu vou levar ele pros meninos.

– É pior, Maria.

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se.

– Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.

– Não, eu passei a manhã toda assentado.

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:

– Acho que eu vou andando.

– Já vai?

– Mamãe não aguenta eles, você sabe.

– Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.

O homem tirou uma nota do bolso de dentro do paletó e estendeu-a para a mulher.

– Volta de bonde.

– Não, Zé.

– É muito longe, criatura.

– Não.

– Ora, minha nega.

A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.

– Vou ver se levo.

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.

– Não chega tarde não, viu, Zé.

– Chego não.

– Você vai fazer.

– Hoje eu sei que vai melhorar.

– Vai sim, Zé. Eu sei que vai. Eu sei.

A mulher afastou-se rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.

Telma

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O Menino

Trazemos hoje aos leitores do blog interessante conto da grande escritora Lygia Fagundes Telles. Vejam:

O Menino

Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os para trás. E os anéis se estendiam molemente para em seguida voltarem à posição anterior, formando uma coroa de caracóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim.

– Quantos anos você tem, mamãe?

– Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por aí, meu amor, por aí. Quer se perfumar também?

– Homem não bota perfume.

– Homem, homem! – Ela inclinou-se para beijá-lo.

– Você é um nenenzinho, ouviu bem? É o meu nenenzinho.

O menino afundou a cabeça no colo perfumado. Quando não havia ninguém olhando, achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que não houvesse ninguém por perto.

Agora vamos que a sessão começa às oito – avisou ela, retocando apressadamente os lábios.

O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da porta, ouviu-a dizer à empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.

Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tão bom sair de mãos dadas com a mãe. Melhor ainda quando o pai não ia junto porque assim ficava sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de se casar com uma moça igual. Anita não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com aqueles dentes saltados. Tinha que ser igualzinha à mãe.

– Você acha a Maria Inês bonita, mamãe?

– É bonitinha, sim.

– Ah! tem dentão de elefante.

E o menino chutou um pedregulho. Não, tinha que ser assim como a mãe, igualzinha à mãe. E com aquele perfume.

– Como é o nome do seu perfume?

– Vent Vert. Por que, filho? Você acha bom?

– Que é que quer dizer isso?

– Vento Verde.

Vento verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde?

Vento não tinha cor, só cheiro. Riu.

– Posso te contar uma anedota, mãe? Posso?

– Se for anedota limpa, pode.

– Não é limpa não.

– Então não quero saber.

– Mas por quê, pô!?

– Eu já disse que não quero que você diga pô.

Ele chutou uma caixa de fósforos. Pisou-a em seguida.

– Olha, mãe, a casa do Júlio…

Júlio conversava com alguns colegas no portão. O menino fez questão de cumprimentá-los em voz alta para que todos se voltassem eficassem assim mudos, olhando. Vejam, esta é minha mãe! – teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E lembrou deliciado que a mãe de Júlio era grandalhona e sem graça, sempre de chinelo e consertando meia. Júlio devia estar agora roxo de inveja.

– Ele é bom aluno? Esse Júlio.

– Que nem eu.

– Então não é.

O menino deu uma risadinha.

– Que fita a gente vai ver?

– Não sei, meu bem.

– Você não viu no jornal? Se for fita de amor, não quero! Você não viu no jornal, hein, mamãe?

Ela não respondeu. Andava agora tão rapidamente que às vezes o menino precisava andar aos pulos para acompanhá-la. Quando chegaram à porta do cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidão feliz.

A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como se tivesse perdido toda a pressa, ficou tranqüilamente encostada auma coluna, lendo o programa. O menino deu-lhe um puxão na saia.

– Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já entrou todo mundo, pô!

Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os lábios se apertavam comprimindo as palavras e os olhos tinham aquela expressão que o menino conhecia muito bem, nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele sabia que quando ela falava assim, nem súplicas nem lágrimas conseguiam fazê-la voltar atrás.

– Sei que já começou mas não vamos entrar agora, ouviu? Não vamos entrar agora, espera.

O menino enfiou as mãos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o que, pô?!…

– É que a gente já está atrasado, mãe.

– Vá ali no balcão comprar chocolate – ordenou ela entregando-lhe uma nota nervosamente amarfanhada.

Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo, pediu um tablete de chocolate. Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava à beça. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu a mão com impaciência:

– Vamos, meu bem, vamos entrar.

Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente.

– Depressa que a fita já começou, não está ouvindo a música? Na escuridão, ficaram um instante parados, envolvidos por um grupo de pessoas, algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu.

– Venha vindo atrás de mim.

Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas vazias.

– Lá, mãezinha, lá tem duas, vamos lá!

Ela olhava para um lado, para outro e não se decidia.

– Mãe, aqui tem mais duas, está vendo? Aqui não está bom? insistiu ele, puxando-a pelo braço. E olhava aflito para a tela e olhava de novo para as poltronas vazias que apareciam aqui e ali como coágulos de sombra. – Lá tem mais duas, está vendo?Ela adiantou-se até as primeiras filas e voltou em seguida até o meio do corredor. Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas resolutamente.

– Entre aí.

– Licença? Licença?… – ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona desocupada que encontrou, ao lado de uma outra

desocupada também.

– Aqui, não é, mãe?

– Não, meu bem, ali adiante – murmurou ela, fazendo-o levantar-se. Indicou os três lugares vagos quase no fim da fileira. Lá é melhor.

Ele resmungou, pediu licença, licença, e deixou-se cair pesadamente no primeiro dos três lugares. Ela sentou-se em seguida.

– Ih, é fita de amor, pô!

– Quieto, sim?

O menino pôs-se na beirada da poltrona. Esticou o pescoço, olhou para a direita, para a esquerda, remexeu-se.

– Essa bruta cabeçona aí na frente!

– Quieto, já disse.

– Mas é que não estou enxergando direito, mãe! Troca comigo que não estou enxergando!

Ela apertou-lhe o braço. Esse gesto ele conhecia bem e significava apenas: não insista!

– Mas, mãe…

Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre os dentes e que era usado quando estava no auge, um tom tão macio que quem a ouvisse julgaria que ela lhe fazia um elogio. Mas só ele sabia o que havia debaixo daquela maciez.

– Não quero que mude de lugar, está me escutando? Não quero. E não insista mais.

Contendo-se para não dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou o pulôver como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo? Por que a mãe lhe falava daquele jeito, por quê? Não fizera nada de mal, só queria mudar de lugar, só isso… Não, desta vez ela não estava sendo nem um pouquinho camarada. Voltou-se então para lembrar- lhe que estava chegando muita gente, se não mudasse de lugar imediatamente, depois não poderia mais porque aquele era o último lugar vago que restava; Olha aí, mamãe, acho que aquele homemvem pra cá! Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela.

O menino gemeu, Ai! meu Deus… Pronto. Agora é que não restava mesmo nenhuma esperança. E aqueles dois enjoados lá na fita numa conversa comprida que não acabava mais, ela vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o tipo não ia pra guerra, pô!… E a cabeçona da mulher na sua frente indo e vindo para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a flutuarem na tela como teias monstruosas de uma aranha. Um punhado de fios formava um frouxo topete que chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada.

– Mãe, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque.

– Não faça assim, filho, a fita é triste… Olha, presta atenção, agora ele vai ter que fugir com outro nome… O padre vai arrumar o passaporte.

– Mas por que ele não vai pra guerra duma vez?

– Porque ele é contra a guerra, filho, ele não quer matar ninguém – sussurrou-lhe a mãe num tom meigo. Devia estar sorrindo e ele sorriu também,

ah! que bom, a mãe não estava mais nervosa, não estava mais nervosa. As coisas começavam a melhorar e para maior alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus olhos apareceu o retângulo inteiro da tela.

– Agora sim! – disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate. Meteu-o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferecê-los à mãe. Então viu: a mão pequena e branca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de chegar.

O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Por que a mãe fazia aquilo?!… Ficou olhando sem nenhum pensamento, sem nenhum gesto.

Foi então que as mãos grandes e morenas do homem tomaram avidamente a mão pequena e branca. Apertaram-na com tanta força que pareciam querer esmagá-la.

O menino estremeceu. Sentiu o coração bater descompassado, bater como só batera naquele dia na fazenda quando teve de correr como louco, perseguido de perto por um touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se transformando numa massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel. Redondos e estáticos, os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens sem sentido num sonho fragmentado. Os letreiros dançavam e se fundiam pesadamente, como chumbo derretido. Mas o menino continuava imóvel, olhando obstinadamente.

Um bar esfumaçado, brigas, a fuga do moço de capa perseguido pela sereia da polícia, mais brigas numa esquina, tiros. A mão pequena e branca a deslizar no escuro como um bicho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da prisão, os homens agarrando as portas de grade, mais conspirações. Mais homens. A mão pequena e branca. A fuga, os faróis na noite, os gritos, mais tiros, tiros. O carro derrapando sem freios. Tiros.

Espantosamente nítido em meio do fervilhar de sons e falas – e ele não queria, não queria ouvir! – o ciciar delicado dos dois num diálogo entre os dentes.

Antes de terminar a sessão – mas isso não acaba mais, não acaba? -, ele sentiu, mais do que sentiu, adivinhou a mão pequena e branca desprender-se das mãos morenas. E do mesmo modo manso como avançara, recuar deslizando pela poltrona e voltar a se unir à mão que ficara descansando no regaço. Ali ficaram entrelaçadas e quietas como estiveram antes..

– Está gostando, meu bem? – perguntou ela inclinando-se para o menino.

Ele fez que sim com a cabeça, os olhos duramente fixos na cena final. Abriu a boca quando o moço também abriu a sua para beijar a enfermeira.

Apertou os olhos enquanto durou o beijo. Então o homem levantou-se embuçado na mesma escuridão em que chegara o menino retesou-se, os maxilares contraídos, trêmulo. Fechou os punhos. Eu pulo no pescoço dele, eu esgano ele!

O olhar desvairado estava agora nas espáduas largas interceptando a tela como um muro negro. Por um brevíssimo instante ficaram paradas em sua frente. Próximas, tão próximas. Sentiu a perna musculosa do homem roçar no seu joelho, esgueirando-se rápida. Aquele contato foi como ponta de um alfinete num balão de ar. O menino foi-se descontraindo. Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e pendeu a cabeça para o peito.

Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou para a mãe. Ela sorria com aquela mesma expressão que tivera diante do espelho, enquanto se perfumava. Estava corada, brilhante.

– Vamos, filhote?

Estremeceu quando a mão dela pousou no seu ombro. Sentiu­ lhe o perfume. E voltou depressa a cabeça para o outro lado, a cara pálida, a boca apertada como se fosse cuspir. Engoliu penosamente. De assalto, a mão dela agarrou a sua. Sentiu-a quente, macia. Endureceu as pontas dos dedos, retesado, queria cravar as unhas naquela carne.

– Ah, não quer mais andar de mãos dadas comigo?

Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça rancheira.

– É que não sou mais criança.

– Ah, o nenenzinho cresceu? Cresceu? – Ela riu baixinho. Beijou-lhe o rosto. – Não anda mais de mão dada?

O menino esfregou as pontas dos dedos na umidade dos beijos no queixo, na orelha. Limpou as marcas com a mesma expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da calça quando cortava as minhocas para o anzol.

Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentando excitada o enredo do filme. Explicando. Ele respondia por monossílabos.

– Mas que é que você tem, filho? Ficou mudo…

– Está me doendo o dente.

– Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Você tinha hora ontem, não tinha?

– Ele botou uma massa. Está doendo – murmurou inclinando-se para apanhar uma folha seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindoa boca.

– Como dói, pô.

– Assim que chegarmos você toma uma aspirina. Mas não diga, por favor, essa palavrinha que detesto.

– Não digo mais.

Diante da casa de Júlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina.

– Dona Margarida.

– Hum?

– A mãe do Júlio.

Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balanço, lendo o jornal. Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de que alguma coisa terrível ia acontecer paralisou-o atônito, obumbrado. O olhar em pânico procurou as mãos do pai.

– Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho? – perguntou ela, beijando o homem na face. – Mas a luz não está muito fraca?

– A lâmpada maior queimou, liguei essa por enquanto – disse ele, tomando a mão da mulher. Beijou-a demoradamente. Tudo bem?

– Tudo bem.

O menino mordeu o lábio até sentir gosto de sangue na boca.

Como nas outras noites, igual. Igual.

– Então, filho? Gostou da fita? – perguntou o pai dobrando o jornal. Estendeu a mão ao menino e com a outra começou a acariciar o braço nu da mulher. – Pela sua cara, desconfio que não.

– Gostei, sim.

– Ah, confessa, filhote, você detestou, não foi? – contestou ela. – Nem eu entendi direito, uma complicação dos diabos, espionagem, guerra, máfia… Você não podia ter entendido.

– Entendi. Entendi tudo – ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu.

– E ainda com dor de dente! – acrescentou ela desprendendo-se do homem e subindo a escada. Ah, já ia esquecendo a aspirina.

O menino voltou para a escada os olhos cheios de lágrimas.

– Que é isso? – estranhou o pai. – Parece até que você viu assombração. Que foi?

O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos. Os óculos pesados. O rosto feio e bom.

– Pai… – murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: – Pai…

– Mas meu filho, que aconteceu? Vamos, diga!

– Nada. Nada.

Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço.

Karina

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Sempre Clarice

Não podemos deixar de render nossas eternas homenagens a uma escritora tão completa, profunda e maravilhosa como foi Clarice Lispector. Lembrar dela é reverenciar a própria literatura. Clarice foi a mais inteligente escritora brasileira de todos os tempos.

Abaixo segue mais um conto da magnífica autora que integra o livro “Felicidade Clandestina”. A consciência da escritora, de uma lucidez pungente, sua clareza ao explicar coisas indescritíveis para a maioria dos pobres mortais é fascinante e avassaladora. Vale a pena conferir:


Perdoando Deus


Eu ia andando pela avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de proprétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurando esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

…mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, eu eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre  tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque eu ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia seu eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer da minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim mesma consegui foi me submeter a mim mesma, pois ou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

Telma

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O Homem Que Se Endereçou

Ignácio de Loyola Brandão nasceu na cidade de Araraquara, em 31 de julho de 1936;  escreveu contos, romances e também atuou como jornalista. Em 2000, foi o vencedor do consagrado prêmio Jabuti pelo livro de contos  “O homem que odiava a segunda-feira”. É membro da Academia Paulista de Letras.

O excelente texto abaixo é de autoria do escritor modernista e faz parte do livro “O homem do furo na mão & outras histórias”, publicado em 1987. Interessante e inteligente.

O homem que se endereçou

Apanhou o envelope e na sua letra cuidadosa subscritou a si mesmo:

Narciso, rua Treze, nº 21.

Passou cola nas bordas do papel, mergulhou no envelope e fechou-se. Horas mais tarde a empregada colocou-o no correio. Um dia depois sentiu-se na mala do carteiro. Diante de uma casa, percebeu que o funcionário tinha parado indeciso, consultara o envelope e prosseguira. Voltou ao DCT, foi colocado numa prateleira. Dias depois, um novo carteiro procurou seu endereço. Não achou, devia ter saído algo errado. A carta voltou à prateleira, no meio de muitas outras, amareladas, empoeiradas. Sentiu, então, com terror, que a carta se extraviara. E Narciso nunca mais encontrou a si mesmo.

Telma

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O Alienista

Machado de Assis, gênio falecido em 1908, no Rio de Janeiro, escreveu grandes e imperdíveis romances, tais como: “A Mão e a Luva”; “Helena”; “Memórias póstumas de Brás Cubas”; “Quincas Borba”; “Dom Casmurro”. Também produziu obras memoráveis na seara dos contos, poesias e teatro.

Trata-se, como é notório, de um autor completo e maravilhoso, de inteligência aguçada e talento incomparável. Pertencente à escola literária do Realismo e bastante adepto da digressão em suas obras, Machado é tido, sem favor nenhum, como o maior escritor de língua portuguesa de todos os tempos.

Um de nossos contos preferidos, escrito pelo admirável  Machado de Assis, é “O Alienista’, cuja temática gira em torno da tênue linha existente entre a loucura e a sanidade mental. Quem é louco? Quem é são? A conclusão a que se chega ao final é surpreendente.

A seguir, transcrevemos  um trecho do mencionado conto, esperando que o leitor, seguindo a dica, leia a obra na íntegra:

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Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissões, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor.

… Mal dormia e mal comia; e ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

–  A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárecere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas ou três de consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer germe de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.

Telma

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Domingo com Clarice Lispector

Conto maravilhoso de Clarice Lispector. Quem ama ler, certamente já se sentiu assim como a personagem do texto…

Felicidade Clandestina

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Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberto, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Pareceu que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Karina

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Um homem de consciência

1117715_aloneO conto abaixo é de autoria de Monteiro Lobato, integra o livro “Cidades Mortas” e pertence à era pré-modernista da literatura brasileira.

Monteiro Lobato é nome de irrefutável destaque em obras relacionadas ao regionalismo e à denúncia da realidade brasileira. O texto reproduzido nesse post tem como personagem central um homem simples, do meio rural, que se defronta com os problemas ocorridos na região onde vive e não dá valor a si mesmo. Interessante crítica à inversão de valores e ao desprezo à moralidade que costumam ocorrer no Brasil.

Um homem de consciência

Chamava-se João teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

 – Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está acabando…

João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

 – É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!…

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada, botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.

 – Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

 – Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

 – Mas, como? Agora que você está delegado?

 – Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.

E sumiu.”

Telma

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Mário de Andrade em “O Peru de Natal”

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Conforme já apontamos no post anterior, com a aproximação das festas de fim de ano, procuraremos nos ater a temas natalinos em nossos textos do blog.

Nesse sentido, trazemos à análise o famoso conto de Mário de Andrade, denominado “O Peru de Natal”, cuja leitura acreditamos ser indispensável.

Mário de Andrade nasceu em São Paulo, em 1893 e foi um grande escritor modernista, uma de suas tantas habilidades. Entre suas principais obras, convém citarmos “Amar, verbo intransitivo”, ” Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, e “Contos Novos”, entre outras.

Mas o próprio Mário, morto em 1945, explicitou sua preferência pelos contos, chegando a declarar que admirava a forma do conto por sua concisão e por propiciar uma comunicação direta entre o escritor e o leitor.

Pois bem. Já que a época é convidativa, a dica de leitura do post de hoje é justamente um conto de Mário de Andrade, envolvendo o clima de Natal.

“O Peru de Natal” conta a estória de uma família que viveu anos e anos marginalizada pela opressão de um pai conservador, frio e rígido. Com a morte do patriarca, o filho, narrador da estória, vislumbra a possibilidade de ver a família viver com mais paz, ternura e naturalidade. Para tanto, compra um peru para comemorar o Natal, apesar do luto em que ainda se encontra a família. Há um clima de culpa no ar em fazer-se festa apesar da morte do pai.

A idéia central do conto promove  uma crítica à sociedade consumista e às festas de família em geral onde, via de regra, reinam as aparências e a hipocrisia. O autor também procura mostrar o verdadeiro espírito de Natal, que não se confunde com presentes e ostentação de enfeites, comidas e bebidas.

Interessantíssimo!

Abaixo, colocamos trechos do conto mencionado, para despertar o apetite de leitura nos frequentadores do blog, lendo-o depois integralmente:

” O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeiras, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

 – Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes.

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem do papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

 – Só falta seu pai…

 – É mesmo…  Mas papai, que queria tanto bem a gente, morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante no céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave.

O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade…”.

Telma

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A velha contrabandista

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Stanislaw Ponte Preta era o pseudônimo usado pelo  escritor, jornalista, radialista e apresentador de TV Sérgio Porto, que nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e faleceu em 1968. Suas marcas eram a inteligência, o humor e uma irreverência inconfundível. Foi certamente um dos maiores cronistas do Brasil, deixando muita saudade.

Em homenagem a este grande e multifacetado brasileiro, postamos abaixo um de seus mais divertidos contos, para apreciação do caro leitor. Podem esperar por mais de Stanislaw aqui no blog.

A velha contrabandista

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruta saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega – tudo malandro velho – começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim para ela:

 – Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

 – É areia.

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido, o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

 – Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

 – Mas no saco só tem areia! – insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

 – Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?

 – O senhor promete que não “espáia”? – quis saber a velhinha.

 – Juro – respondeu o fiscal.

 – É lambreta.

 

Telma

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