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Luis Fernando Veríssimo, para descontrair

TRISSEXUAL

As amigas se contavam tudo, tudo, do mais banal ao mais íntimo. Eram amigas desde pequenas e não passavam um dia sem se falar. Quando não se encontravam, se telefonavam. Cada uma fazia um relatório do seu dia e do seu estado, e não escapava uma ida ao super, um corrimento, uma indagação filosófica ou uma fofoca nova. Deus e todo o mundo, literalmente. Janice, Marília e Branca. Branca era a mais nova, mas já casara e já enviuvara, o que despertara um certo pânico protetor nas outras duas. Tudo acontecia rápido demais para a Branquinha, que precisava ser protegida da sua vida precipitada, da sua vida vertiginosa. Por isso Janice telefonou para Marília quando soube que a Branquinha estava namorando um homem chamado Futre, Amado Futre, Rosimar Amado Futre, e que, como se não bastasse isto, ele declarara à Branquinha que era trissexual.
– Marília de Deus – disse a Janice – o que é trissexual?!

– Bom… Bi é quando transa com os dois sexos.

– Isso eu sei.

– Tri deve ser quando transa com dois sexos e com bicho. Janice teve uma visão da Branquinha na cama com Rosimar Amado Futre, o porteiro do prédio e uma cabra. Ou um cabrito?

– Bichos dos dois sexos?

– E eu vou saber?! – gritou a Marília.

Era preciso proteger a Branquinha. Mas do quê, exatamente?

– O que é trissexual? – perguntou a Janice ao seu marido Rubião.

– Ahn? – disse Rubião, acordando.

Rubião dominara o truque de segurar um jornal na frente do rosto e dormir sem que a mulher notasse.  Janice não entendia como um homem que lia tanto jornal podia ser tão mal informado.

– O que é trissexual?

– É… é…
– Volta pro seu jornal, Rubião.

Apesar de ser a mais moça das três, Branquinha fora a primeira a perder a virgindade. Já fizera tudo que pode ser feito sobre uma cama. Ou, no caso dela, sobre uma cama, sobre uma mesa de cozinha, jantar ou pingue-pongue, sobre um estrado, na praia, no meio do campo, uma vez até no último banco de um ônibus intermunicipal – e sempre contando tudo, tudo, às outras duas. Que também contavam tudo que lhes acontecia, só não tinham tanto para contar. A Janice contava sua vida com o Rubião, que só transava nos sábados e vésperas de feriado. A Marília, que ainda não se casara e namorava um dentista chamado João, inventava, para não pensarem que ela também não tinha uma vida sexual. Mas nem as invenções mais criativas da Marília se igualavam às experiência da Branquinha. E agora um trissexual chamado Amado Futre! Branquinha talvez estivesse indo longe demais. Era preciso proteger a Branquinha.

Mas apesar de vários avisos (“Olhe lá, hein Branquinha?”) a Branquinha concordou em passar um fim de semana na serra com o Rosimar Amado Futre. E na volta, não telefonou para contar tudo, como ficara combinado. Teria lhe acontecido alguma coisa? Ela estaria num hospital, com um deslocamento, depois do que o Futre lhe fizera? Mordida por algum animal, nos arroubos da paixão? Janice e Marília não se contiveram, invadiram o apartamento de Branquinha e exigiram um relato completo. Mas cada pergunta sobre o fim de semana, Branquinha respondia “Nem te conto”. E não contou mesmo. Depois da experiência com Rosimar Amado Futre, estava tão na frente das outras que não tinham mais o que conversar. Não tinham mais pontos de referência, era isso.

Marília perguntou ao namorado João, o dentista, o que era trissexual.

– Tri?!

– É. Tri em vez de bi.

– Bi?!

– Esquece, João.

 

(Luis Fernando Veríssimo in Sexo na Cabeça – Editora Objetiva)

Karina

 

 

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Bacalhau

Já deu para perceber que o Literatura em Conta-Gotas é fã incondicional de Luis Fernando Verissimo. Também, pudera, não é todo dia que encontramos crônicas tão especiais, inteligentes e cheias de humor como as que ele escreve. Vale a pena ler tudo o que ele cria. É definitivamente o que você encontra no texto abaixo. Boa leitura!


BACALHAU

Vítor e Vivinha decidiram dar uma última chance a se casamento. Despois de dez anos, nada mais dava certo, se irritavam um com o outro – era preciso ir atrás do amor perdido. E o lugar para procurá-lo era o restaurante onde tinham se conhecido, onde tinham ido na primeira vez em que saíram juntos, onde ele a pedira em casamento e onde comemoravam a data todos os anos. Até o sexto, quando, por alguma razão, pararam de frequentar o restaurante. Se o que tinham perdido estava em algum lugar, estaria no velho restaurante. Talvez as risadas dadas e as promessas de amor secreto ainda estivessem lá, presas no teto como balões de aniversários esquecidos, esperando o resgate. E se não estivessem, pelo menos haveria os bolinhos de bacalhau.

O restaurante continuava no mesmo lugar. Estava vazio.

– Até as toalhas são as mesmas! – disse Vivinha.

E os dois sentaram-se e ficarm se sorrindo, enternecidos, as boas lembranças rondando a mesa como fantasmas solícitos. Até que veio o garçom. Seria o mesmo do tempo deles?

– O senhor é o Adolfo?

– Não – respondeu o garçom.

E não fez qualquer comentário. Não ser o Adolfo parecia um fato ao qual ele se resignara há muito tempo. Vítor tamborilou a mesa com os dedos  – um de seus hábitos que ultimamente irritavam Vivinha – e pediu:

– Antes de mais nada: bolinhos de bacalhau!

O garçom afastou-se, claramente não contagiado pelo entusiasmo de Vítor. Deixou sobre a mesa um cardápio datilografado e plastificado. nada como os de antigamente. Vivinha examinou o cardápio, depois de pousar suas mãos suavemente sobre os dedos agitados de Vítor, para fazê-los parar.

– Mudou tudo – disse Vivinha, largando o cardápio.

Ficaram de mãos dadas, olhando em volta, sorrindo levemente mas sem dizer nada, até chegarem os bolinhos. Quatro.  Cada um pegou um, mordeu e começou a mastigar.

– E então? – perguntou Vítor, depois de um tempo.

– Ainda não cheguei ao bacalhau.

– O meu está ótimo.

– Você está brincando.

– Não, está ótimo. Igual ao que era no nosso tempo.

– Só que no nosso tempo era de bacalhau mesmo. Agora é de batata.

– Como, batata? E este gosto de bacalhau?

– Eles usam outro tipo de peixe. Muita batata, e um peixe barato. Bacalhau está muito caro.

– Eu estou sentindo um gosto bem definido de bacalhau. Igualzinho ao que eu me lembrava.

– Não é mais o mesmo, Vítor.

– Acho que é má vontade sua.

– Não sou eu, Vítor. É o bolinho.

Vítor pegou outro bolinho e botou inteiro na boca. Mastigou furiosamente.

– Mmmm – disse, desafiador.

– Vítor…

– Ô Adolfo! – gritou Vítor para o garçom, de boca cheia. – Mais quatro. E duas cervejas.

– Vítor, você pode mastigar esses bolinhos o quanto quiser, não vai encontrar bacalhau.

– Pois eu digo que é bacalhau.

– Não é mais, Vítor.

Ele parou de mastigar. Tirou o que sobrara da boca e colocou no prato. Olhou para Vivinha.

– E se a gente fingisse que é bacalhau?

– Não dá, Vítor.

O garçom chegou com as cervejas.disse que os bolinhos estavam vindo.

– Suspende – ordenou Vítor.

– Vão pedir mais alguma coisa? – perguntou o garçom, indicando o cardápio com um queixo desdenhoso.

– Ainda não escolhemos.

Quando o garçom foi embora, Vítor inclinou-se para Vivinha e disse:

– Sabe o que eu acho? Acho que no nosso tempo já não era bacalhau. E a gente adorava.

– Era bacalhau.

– Não era. Nada era bacalhau naquela época. Mas você revirava os olhos assim mesmo.

E Vítor começou a batucar na mesa com os dedos até Vivinha abafar suas mãos com as dela. Desta vez com raiva.

Telma

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Presente, de Verissimo

As crônicas de Luis Fernando Verissimo são espetaculares. As que compõem o livro “Comédias da Vida Privada” são mais do que espetaculares; são um passaporte certo para o humor inteligente.

A seguir reproduzidos mais uma dessas crônicas.  Impossível não sorrir ao final.


PRESENTE

Aconteceu neste natal. Ele mostrou o presente recém desembrulhado.

– Meias.

– E o que mais?

– Mais nada. Só meias.

– Nem um lenço?

– Meias. Eu entrei na lista.

– Que lista?

O outro se inclinou para ouvir melhor. A família era grande e ruidosa e na hora de abrir os presentes ficava ainda mais ruidosa.

– A lista das meias. Existe uma lista das pessoas que, segundo eles, só devem ganhar meias no Natal.

– Quem são “eles”?

– Os que fazem as listas.

– Quais são os critérios?

– Você entra na lista das meias quando eles decidem que você não precisa, não merece ou não se interessa por mais nada. Ou não tem mais idade para outra coisa.

– As listas, então, são por idade?

– São. Existe a idade de ganhar brinquedos e jogos. Obviamente, nós não estamos mais nela. A idade de ganhar carteira de dinheiro. Depois a idade de ganhar dinheiro num envelope para gastar como quiser…

– Com a recomendação de não gastar tudo em mulher.

– Isso! Depois livros, discos, bebidas…

– Este ano eu ganhei um vinho.

– Sinal de que você está se aproximando da lista das meias. No ano passado, eu ganhei um vinho. Este ano eles decidiram que o álcool pode me fazer mal. Me deram meias.

– Você não pode pedir para sair da lista das meias?

– Impossível. Quem entra na lista das meias, entra, automaticamente, na lista dos que não são mais ouvidos sobre assunto nenhum. Inclusive as listas.

– Podiam dar uma gravata.

– Não. Gravata dá a entender que esperam que você ainda vá a algum lugar. De gravata. Dão meias, para ficar em casa.

– Uma loção…

– Cheirar bem pra que, na minha idade? Meias.

– Você poderia dar uma indireta…

– Passei o ano inteiro dizendo que estava precisando de um guarda-chuva novo. Guarda-chuva? Para sair na rua? Ainda mais com chuva? Meias.

– Quem entra na lista das meias, então…

– Só sai para entrar em outra lista. Ainda mais irrevogável e terrível.

– Qual?

– A das meias de lã.

– Essa é definitiva.

– É. Dos que estão na lista de meias de lã se presume que não têm outra ambição ou gosto na vida senão manter os pés quentes. Meias de outro material ainda deixam subentendida a possibilidade, mesmo remota, de uma recuperação. A medicina hoje faz milagres, você ainda pode voltar para a lista da loção. Até mesmo da gravata.

– Mas da lista das meias de lã ninguém sai…

– Com vida, não.

Telma

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A Barata

Mais uma do inigualável Verissimo para animar a semana do respeitável leitor do blog. Boa segunda-feira!

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A BARATA

Veio o maître, chamado pelo garçom, e perguntou:

– Algum problema, cavalheiro?

– Problema, não. Barata.

– Pois não?

– Olhe.

O maître olhou e viu a barata no meio da salada.

– Sim…

– “Sim” diz você. Eu digo não. Pedi uma salada niçoise que, até onde eu sei, não leva barata.

– Por favor, fique calmo.

– Eu estou calmo.

– Vamos trocar por outra salada.

– Eu não quero outra salada. Quero uma satisfação.

– Foi um acidente.

– “Acidente” diz você. Eu digo: não sei não. Acidente seria se uma barata perdida, separada da sua turma, entrasse na cozinha por engano e pousasse na minha salada. Mas não foi isso que aconteceu. Para começar, esta barata está morta. Não duvido que o tempero da salada esteja de matar, duvido que tenha sido o causador da morte da barata. Obviamente, a barata já estava morta antes de cair na salada. Não há sinais de violência em seu corpo, logo ela deve ter sido vítima de agentes químicos, usados numa matança generalizada de baratas e outros bichos dentro da sua cozinha. É impossível precisar quando isso se deu. Só uma autópsia da barata revelaria a hora exata da morte. A dedetização da cozinha pode estar ainda afetando os alimentos, não só adornando-os com insetos mortos como temperando-os com veneno invisível. Se isso for verdade, quero uma satisfação.Sou um cidadão. Conheço meus direitos. Isto é uma democracia.

– Vou chamar o gerente.

Veio o gerente, chamado pelo maître, e disse que sim, a cozinha tinha sido dedetizada, mas um mês antes. Fora fechada para a operação. Não havia perigo de intoxicação dos alimentos, nem indício de que a barata na salada fosse resultado de uma dedetização recente.

– Então – sugeriu o cliente – ela demorou a morrer. Cambaleou, agonizante, pela cozinha durante um mês, até enxergar minha slada niçoise e escolher esta alface como sua mortalha. Eu vou botar a boca no mundo! Onde é que estamos?!

O gerente telefonou para o dono do restaurante que dali a pouco entrou pela porta pedindo desculpas e consideração. A dedetização da cozinha fora ordenada pela Secretaria Municipal de Saúde. Para confirmar isto, o dono do restaurante tinha trazido o secretário municipal da Saúde, que disse ter agido seguindo diretrizes do Ministério da Saúde. O ministro da Saúde foi convocado e, na chegada ao restaurante, se responsabilizou por tudo. Menos pela barata. A barata na salada não podia, cronologicamente, ser uma decorrência da dedetização. A não ser que alguém da cozinha a tivesse guardado, conservado no gelo e esperado a ocasião para…

O cliente interrompeu a especulação do ministro com um tapa na mesa e perguntou quem era o seu superior. O ministro suspirou e tirou seu telefone celular do bolso para convocar o presidente da República, que chegou em menos de meia hora, vestido a rigor.  Deixara uma recepção no palácio para atender ao chamado.

– Que foi? – perguntou o presidente.

– Olhe.

O presidente olhou e viu a barata. Disse:

– E daí?

– A responsabilidade é sua.

O presidente concordou com a cabeça.Perguntou o que o outro queria.

– Uma satisfação.

O presidente pediu desculpas. O homem não aceitou. O presidente ofereceu uma indenização. O homem não quis. Chamaram o misitro do Exército.

O general chegou e perguntou, como maître:

– Algum problema, cavalheiro?

O homem apontou para a salada. O general olhou, disse “Oba, uma azeitona!”, pegou a barata e a engoliu. Depois, o homem foi preso e processado por fazer acusações falsas ao restaurante. Era uma democracia até certo ponto.

Telma

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Para cada dia uma palavra

Escolhemos uma crônica divertida e leve para descansar a mente do caríssimo leitor nesse meio de semana. O autor é o incomparável Luis Fernando Verissimo e o texto escolhido, da excelente série “Comédias da Vida Privada”, traz uma sagaz brincadeira com as palavras.  Boa leitura!

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DE DOMINGO

– Outrossim…

– O quê?

– O que o quê?

– O que você disse.

– Outrossim?

– É.

– O que é que tem?

– Nada. Só achei engraçado.

– Não vejo a graça.

– Você vai concordar que não é uma palavra de todos os dias.

– Ah, não é. Aliás, eu só uso domingo.

– Se bem que parece mais uma palavra de segunda-feira.

– Não. Palavra de segunda-feira é “óbice”.

– “Ônus”.

– “Ônus” também. “Desiderato”. “Resquício”.

– “Resquício” é de domingo.

– Não, não.Segunda, no máximo terça.

– Mas “outrossim”, francamente…

– Qual é o problema?

– Retira o “outrossim”.

– Não retiro. É uma ótima palavra. Aliás, é uma palavra difícil de usar. Não é qualquer um que usa “outrossim”. tem que saber a hora certa. Além do dia.

– Aliás, uma palavra que uso pouco é “aliás”.

– Pois você não sabe o que está perdendo. “Aliás” é ótimo. Muito bom também é “não obstante”.

– “Não obstante”! Acho que essa eu nunca usei.

– “Não obstante” é de sábado.

– Quais são as outras palavras de domingo?

-Bem, tem “bel-prazer”.

– “Bel-prazer” é fantástico.

– “Trâmites”, “paulatino” ou “paulatinamente”, “destarte”…

– “Amiúde” é de domingo?

– Não, meio de semana. De domingo é “assaz”.

– Mas o que é que você estava dizendo?

– O que era mesmo? Eu parei no outrossim…

– Não. Eu não aceito outrossim.

– Como, não aceita?

– Não quero. Outrossim, não. Usa outra palavra.

– Mantenho o outrossim.

– Então é fim de papo.

– Você vai me tirar o outrossim da boca? Eu tive um trabalho danado para arranjar uma frase para encaixar o outrossim e agora não posso usar?

– Pra cima de mim, não.

– Deveras, eu…

– Deveras não!

– Mas deveras é de domingo.

– Não. Retira o deveras. Retira o deveras!

Telma

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Bom Mesmo é…

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Resolvemos alegrar o sábado dos frequentadores do blog. Para isso, transcrevemos abaixo mais uma crônica de Luis Fernando Verissimo, da série “Novas Comédias da Vida Privada”.

Hoje o nobre leitor apreciará a crônica “Bom Mesmo”.  Diversão inteligente garantida.

“O homem passa por várias fases na sua breve estada neste palco que é o mundo, segundo Shakespeare, que só foi original porque foi o primeiro que disse isso. Muitas coisas distinguem uma fase da outra – a rigidez dos tecidos, o alcance e a elasticidade dos membros, a energia e o que se faz com ela -, mas o que realmente diferencia os estágios da experiência humana sobre a Terra é o que o homem, a cada idade, considera bom mesmo. Não o que ele acha bom – o que ele acha melhor. Melhor do que tudo. Bom mesmo.

Um recém-nascido, se pudesse participar articuladamente de uma conversa com homens de outras idades, ouviria pacientemente a opinião de cada um sobre as melhores coisas do mundo e no fim decretaria:

 – Conversa. Bom mesmo é mãe.

Já um bebê de mais idade discordaria.

 – Bom mesmo é papinha.

Depois de uma certa idade, a escolha do melhor de tudo passa a ser mais difícil. A infância é um viveiro de prazeres. Como comparar, por exemplo, o orgulho de um pião bem lançado, ou o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entres os dedos, com o cheiro de terra úmida ou de caderno novo? Existem gostos exóticos:

 – Bom mesmo é cheiro de Vick Vaporub.

Mas acho que, tirando-se uma média das opiniões de pré-adolescentes normais e brasileiros, se chegaria fatalmente à conclusão de que, nessa fase, bom mesmo, melhor do que tudo, melhor até do que fazer xixi na piscina, é passe de calcanhar que dá certo.

Existe ainda uma fase, no começo da puberdade, em que a indecisão é de outra natureza. O cara se acha na obrigação de pensar que bom mesmo é mulher (no caso prima, que é parecido com mulher), mas no fundo ainda tem a secreta convicção de que bom mesmo é acordar com febre na segunda-feira e não precisar ir à aula. Depois, sim, vem a fase em que não tem conversa:

 – Bom mesmo é sexo!

Essa fase dura, para muita gente, até o fim da vida. Mesmo quando sexo não está em primeiro lugar numa escala de preferências (“Pra mim é sexo em primeiro e romance policial em segundo, longe”) serve como referência. Daí para diante, quando alguém disser que “bom mesmo” é outra coisa que não o sexo estará sendo exemplarmente honesto ou desconcertantemente original.

 – Olha, bom mesmo é figada com queijo.

 – Melhor do que sexo?

 – Bem… Cada coisa na sua hora.

Há quem anuncie o que prefere mesmo como quem faz uma confissão há muito contida. Abre o jogo e o peito, e não importa que pensem que o sexo não lhe interessa mais:

 – Pensem o que quiserem. Pra mim, bom mesmo é discurso de baiano.

E há casos patéticos. Tem uma crônica do Paulo Mendes Campos em que ele conta de um amigo que sofria de pressão alta e era obrigado a fazer uma dieta rigorosa. Certa vez, no meio de uma conversa animada de um grupo, durante a qual mantivera um silêncio triste, ele suspirou fundo e declarou:

 – Vocês ficam aí dizendo que bom mesmo é mulher. Bom mesmo é sal!

Com a chamada idade madura, embora persista o consenso de que nada se iguala ao prazer, mesmo teórico, do sexo, as necessidades do conforto e os pequenos prazeres das coisas práticas vão se impondo.

 – Meu filho, eu sei que você, aí tão cheio de vida e de entusiasmo, não pode compreender isso. Mas tome nota do que eu vou dizer porque um dia você concordará comigo: bom mesmo é escada rolante.

E assim é a trajetória do homem e seu gosto inconstante sobre a Terra, do colo da mãe, que parece que nada, jamais, substituirá, à descoberta final de que uma boa poltrona reclinável, se não é igual, é parecida. E que bom, mas bom mesmo, é não precisar ir a lugar nenhum, mesmo sem febre.”

 

Telma

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Verissimo para relaxar

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Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, no ano de 1936. Filho do maravilhoso escritor Érico Verissimo, seguiu os passos do pai à altura, tendo publicado um sem-número de obras muito inteligentes e cheias de humor. Além de escritor, é cartunista e roteirista de televisão.

Um de seus livros mais famosos e festejados é “Novas Comédias da Vida Privada”. Trata-se de  uma coletânea de 123 crônicas que, de tão interessantes e engraçadas, podem ser lidas de sopetão, numa única noite.

Hoje presenteamos o leitor com uma dessas crônicas, intitulada “Cama, Mesa e Banho”. Em breve, certamente colocaremos outras, para satisfação dos frequentadores do blog.

Divirtam-se!

A tese da mãe da Julinha é a seguinte: qualquer casamento pode ser salvo até começarem a voar objetos. Um casamento sobrevive a tudo, menos ao açucareiro na cabeça. E a mãe da Julinha é contra a tese segundo a qual, se um casamento dá certo na cama, o resto se arranja. Ela acha que é justamente o contrário. Foi o que disse para a Julinha quando a filha anunciou que ia se casar com o Torres duas semanas depois de conhecê-lo.

 – É uma loucura! Vocês não sabem nada um do outro.

 – No que interessa, já nos conhecemos até demais.

Se dependesse da Julinha, nem haveria casamento. Mas a mãe insistiu. Não fazia questão de véu e grinalda, mas alguma cerimônia tinha que haver, nem que fosse só para terem o que fotografar.

 – Se seu pai não usar gravata prateada, morre – foi o argumento da mãe para convencer a filha única.

A Julinha cedeu. Aceitou a cerimônia civil, as famílias reunidas, os salgadinhos, os bolos, as fotos, a gravata prateada do pai, tudo. Mesmo porque 15 minutos depois de assinarem os papéis, ela e o Torres já estavam no hotel, inaugurando oficialmente a lua-de-mel, antes de viajarem para Cancún.

Os problemas começaram no dia seguinte.

Ao meio-dia, Julinha apareceu em casa de surpresa. A mãe levou um susto.

 – Vocês não viajaram?

 – Ele raspa a manteiga, mamãe.

 – O quê?

 – Descobri hoje no café da manhã. No hotel. Ainda bem que eles serviram a manteiga em tablete. Senão eu só ia descobrir depois.

 – Minha filha, eu não estou…

 – Ele raspa a manteiga! Não corta em segmentos, como eu. Como é normal, como é o certo. Raspa por cima. E outra coisa…

 – O quê?

 – A pasta de dente. Aperta no meio. Não começa a apertar por baixo. Aperta em qualquer lugar, mamãe. Eu não posso viver com um homem que aperta o tubo de pasta de dente no meio.

A mãe se sentiu justiçada. Tinha avisado, não tinha? Na cama, qualquer um se acerta. O problema era a mesa e o banho.

 – Pode-se dar um jeito, minha filha. Seu pai cortava a ponta do queijo. Eu ensinei a cortar ao comprido.

 – Não tem mais jeito, mamãe. Ele disse que é raspador e vai morrer raspador. E outra coisa…

 – O quê?

 – Já voaram objetos.

 – Meu Deus.

 – O casamento acabou.”

 

Telma

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