A nossa indicação de hoje é o livro “A Convidada”, da escritora francesa Simone de Beauvoir.
Simone de Beauvoir nasceu em 1908, na cidade de Paris. Lá se formou em Filosofia e durante esse período conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre, que se tornou seu companheiro de toda a vida.
Feminista, Beauvoir escreveu diversos romances que causaram polêmica na época. Adepta do existencialismo – movimento filosófico que, em síntese, analisa o homem e a sua relação com o mundo, acreditando que o ser humano é definido pelas suas ações – a escritora traz muita de tal corrente filosófica em toda a sua obra.
Simone de Beauvoir morreu em Paris no ano de 1986 e deixou livros que valem a pena ser lidos, como este que indicamos hoje.
“A Convidada” se trata de um romance com traços autobiográficos da autora. Foi escrito nos anos 40 e tem como pano de fundo a cidade de Paris pré 2ª Guerra Mundial. A personagem principal é Françoise, uma escritora de 30 anos de idade que tem um relacionamento estável com Pierre, um diretor de teatro. O relacionamento dos dois é pouco convencional para a época, pois ambos têm liberdade para se envolverem com outras pessoas. Assim, Pierre tem relações superficiais com outras mulheres, enquanto dedica a Françoise um amor amplo e total cumplicidade.
Parece que nada vai abalar a felicidade sem intercorrências do casal. Mas aí aparece Xavière, uma jovem provinciana que chega a Paris e invade completamente a vida dos dois. No início, Françoise – segura do amor de seu companheiro – se encanta com a jovem e, junto com Pierre, se dedica a apresentar-lhe Paris.
Mas, pouco a pouco, a presença constante da outra começa a se tornar uma ameaça ao seu estável relacionamento. A mudança drástica nas atitudes de Pierre com a chegada de Xavière, passa a ser uma angústia sufocante que Françoise não sabe como colocar fim.
Simone de Beauvoir leva o leitor a compartilhar a aflição, as inquietações e todos os pensamentos de Françoise de uma forma extraordinária. Vale a pena ler!
Eis um trecho do livro para que o leitor sinta na pele as agruras de Françoise:
Françoise sentou-se à mesa de trabalho e olhou desalentada as folhas de papel. Tinha a cabeça pesada e dor na nuca e nas costas. Não se sentia com disposição para trabalhar. Xavière, mais uma vez, roubara-lhe meia hora: era terrível o tempo que ela devorava, provocando um estado de tensão sobre-humana em que não havia solidão, nem lazeres, nem mesmo simplesmente repouso. Não, repetia. Diria não com todas as suas forças e Pierre a ouviria. Sentiu que dentro dela qualquer coisa naufragava: Pierre renunciaria facilmente a essa viagem, pois seu desejo não era assim tão violento. E depois? De que servia essa renúncia? O que a angustiava era o fato de Pierre não ter se manifestado contra tal projeto. Ligaria assim tão pouca importância à sua obra? Teria já passado da perplexidade a uma indiferença completa?
(…)
Teve um sobressalto: alguém, que subira a escada precipitadamente, bateu à porta.
– Entre – disse.
Surgiram dois rostos ao mesmo tempo na soleira da porta. Ambos sorriam: Xavière escondera os cabelos num capuz escocês. Pierre segurava o cachimbo na mão.
– Vai achar ruim, se substituirmos a lição por um passeio na neve? – perguntou ele.
Françoise sentiu o coração parar. Regozijara-se tanto ao imaginar a surpresa de Pierre e a satisfação de Xavière perante os seus elogios! Entregara-se de corpo e alma à tarefa de obrigar Xavière a trabalhar. Afinal, tinha que reconhecer sua ingenuidade; as lições para eles não eram coisa séria e, além disso, pretendiam ainda fazê-la assumir a responsabilidade pela preguiça que sentiam.
– Isso é com vocês – respondeu. – Nada tenho a ver com isso.
Os sorrisos desapareceram: essa voz séria não estava prevista na brincadeira deles.
– Você nos censura de verdade? – perguntou Pierre, um pouco desorientado, olhando para Xavière, que o fixava também hesitante sobre a atitude a tomar. Pareciam dois culpados. Pela primeira vez, devido a essa cumplicidade em que Françoise os colocava, surgiam perante esta como um par. Ambos tinham consciência disso e a situação era incômoda.
– Não, não. Aproveitem o passeio.
Fechou a porta, talvez rapidamente demais, e ficou encostada à parede. Eles desciam a escada em silêncio. Françoise adivinhava as expressões penalizadas. De qualquer forma, eles não trabalhariam e ela apenas com sua atitude conseguira estragar-lhes o passeio. Teve uma espécie de soluço. Para que servia isso?
Karina