Posts tagged Hilda Hist

Hilda Hist

Alcoólicas (I)

 vein

 

É crua a vida. Alça de tripa e metal.

 

Nela despenco: pedra mórula ferida.

 

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

 

Como-a no livor da língua

 

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

 

No estreito-pouco

 

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

 

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

 

E perambulamos de coturno pela rua

 

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

 

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

 

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

 

Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.

 

Karina

 

Leave a comment »

Hilda Hist

 Trovas de muito amor para um amado senhor

 

Nave

Ave

Moinho

E tudo mais serei

Para que seja leve

Meu passo

Em vosso caminho.

 

II

 

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

 

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

 

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

 

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

 

E além de vós

Não desejo nada.

 

(Hilda Hilst)

Karina

Leave a comment »

Hilda Hist

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

desejasse.

/

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

/

Te olhei. E há um tempo.

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

/

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

(“Chamamento ao Amigo”, do livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

Karina

Comments (5) »

Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor

I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.

III

Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas
Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento

Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

IV

Que boca há de roer o tempo? Que rosto
Há de chegar depois do meu? Quantas vezes
O tule do meu sopro há de pousar
Sobre a brancura fremente do teu dorso?

Atravessaremos juntos as grandes espirais
A artéria estendida do silêncio, o vão
O patamar do tempo?

Quantas vezes dirás: vida, vésper, magna-marinha
E quantas vezes direi: és meu. E as distendidas
Tardes, as largas luas, as madrugadas agônicas
Sem poder tocar-te. Quantas vezes, amor

Uma nova vertente há de nascer em ti
E quantas vezes em mim há de morrer.

(Hilda Hilst in Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

Karina

Comments (2) »

Hilda Hist

Tô Só

 

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta

de azul

de berimbau

de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar…

Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?

Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave

ave

moinho

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo

em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

 

* Trovas de muito amor para um amado senhor – SP: Anhambi, 1959.

 

(Segunda-feira, 16 de agosto de 1993) – Crônica de Hilda Hilst para o “Correio Popular” de Campinas-SP

 

Hilda Hist nasceu na cidade paulistana de Juá, em 1930.

A escritora, bela e culta, além de “avançada” para a época (anos 50) gerou polêmica e várias  lendas a seu respeito.  Sua obra, passa pela poesia, pela crônica e pelo teatro e fez sucesso também no exterior. Considerada pela crítica uma das melhores autoras brasileiras, Hilda Hist traz como temática principal de sua obra o ser humano, retratando com maestria os questionamentos do homem perante a vida.

Hilda Hist faleceu em 2004 e deixou vasta obra que vale a pena conhecer.

Karina

 

 

Comments (2) »