Hilda Hist

Tô Só

 

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta

de azul

de berimbau

de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar…

Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?

Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave

ave

moinho

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo

em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

 

* Trovas de muito amor para um amado senhor – SP: Anhambi, 1959.

 

(Segunda-feira, 16 de agosto de 1993) – Crônica de Hilda Hilst para o “Correio Popular” de Campinas-SP

 

Hilda Hist nasceu na cidade paulistana de Juá, em 1930.

A escritora, bela e culta, além de “avançada” para a época (anos 50) gerou polêmica e várias  lendas a seu respeito.  Sua obra, passa pela poesia, pela crônica e pelo teatro e fez sucesso também no exterior. Considerada pela crítica uma das melhores autoras brasileiras, Hilda Hist traz como temática principal de sua obra o ser humano, retratando com maestria os questionamentos do homem perante a vida.

Hilda Hist faleceu em 2004 e deixou vasta obra que vale a pena conhecer.

Karina

 

 

2 Respostas so far »

  1. 1

    said,

    que brincá…a Sô num que fica mais só!
    amei.
    bju


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